domingo, setembro 04, 2011

Ágio
Ele precisava encontrar o Zé, ou Seu Cláudio, o cara que empresta dinheiro. A combinação entre a imperícia ao prever futuro e ausência de um fundo de reserva delimita a urgência com que teria que lidar ao levantar tanto dinheiro em um curto espaço de tempo. E não há pior guia que o desespero.
São dois lances de escadas. O primeiro, com meia dúzia de degraus, é onde está o filtro para desavisados, trabalho de um dos funcionários do Zé, ou Seu Cláudio, o cara que empresta dinheiro. Um longo e estreito lance de escadas, que cansa qualquer um que pisa ali, leva até uma hall de 2m², forrado por azulejos  um tanto desalinhados e iluminado por uma boa lâmpada incandescente, que entrega para uma única porta de madeira antiga, com apenas uma tranca. De frente à porta, o sujeito tem o tempo de uma volta de chave daquela fechadura para dar meia-volta. Mas geralmente, a urgência (guiada pelo desespero), aquela que já venceu todos aqueles degraus, é força maior do que o instante entre quem subiu e o Zé, ou Seu Cláudio, o cara que empresta dinheiro.
A porta é aberta por um caboclo sem sorriso e porte acima da média. Veste calça, sapato e camisa clara. Com a porta aberta, o sujeito é induzido a dar o passo derradeiro. Aqui, agora, ele não é mais ele. Ele será alguém que não desistiu de encontrar o Zé, ou Seu Cláudio, o cara que...
Todos sustentam a mística com os mesmos argumentos, o que não deixa de conferir certa coesão aos fatos. A porta se tranca não só pela mesma volta da fechadura, mas pela presença do caboclo, como uma barreira que serve para emprestar mais desespero ao ambiente, uma sala não muito maior que o hall anterior, com chão de tacos soltos, paredes que já foram brancas e luz incandescente. Do lado esquerdo, uma porta sempre fechada, provavelmente responsável pela outra parte da logística do negócio, é companhia de uma bem cuidada samambaia. Entre a entrada e a parede oposta, a cadeira, destino obrigatório de quem entra, mira uma mesa da mesma família da porta. Sobre ela, um telefone, uma ou duas laranjas e uma faca de pouca serra. O dono da mesa é o Zé, ou Seu Cláudio, o cara que empresta dinheiro.
Mesmo com seus óculos que escurecem na presença da luz, o cara que... tem o tipo comum, que se encontra numa fila do Detran. Faz expediente de cartório, despachando individualmente. Os negócios já foram mais agitados, mas perderam espaço para as financeiras com ar condicionado. Por outro lado, isso coloca pressão sobre o caboclo e o departamento de cobrança, que conduzem os clientes por um outro lado da urgência. E sim, sempre há clientes, principalmente porque ninguém nunca sai da sala sem levar algum, seja lá qual for a razão.
E agora que o sujeito entrou, munido de uma dívida de um irmão que já não pode deixar a companhia do credor, puxa a cadeira e entrega seu desespero. Zé, ou Seu Cláudio, o cara que empresta dinheiro apenas ouve, enquanto força a faca contra uma de suas laranjas. Se já não se comovia no começo, não há porque se abalar com mais uma dívida de drogas, nem com a humilhação promovida por baratas ou surras contínuas – procedimento da casa em várias ocasiões. Ele não interrompe, talvez por falta de paciência para lidar com a situação, mas ao se dedicar a laranja, se comporta como um surdo. Mas é aí que as cláusulas começam a ser estabelecidas. Ao ouvir a ladainha dos devedores, sabe exatamente o que pedir em garantia e em qual prazo, moldando o acordo a cada cliente. No fundo, Seu Cláudio se define como um comprador, um incorporador que alcança melhores preços e condições na miséria alheia.
Mas o sujeito de nada sabe. Ao final do breve relato, espera Zé, ou Seu Cláudio, o cara que empresta dinheiro repousar a laranja e a faca. A gaveta é aberta e ali surge a quantia que liberta seu irmão, mas que o amarra àquela sala. Ele já recuperou o fôlego que perdeu com a escada, mas continuará com essa sensação de asfixia até se sentir novamente ofegante, ao entrar naquela mesma sala com quase o dobro de dinheiro com que sai desta vez. Ele sabe disso, tanto que anda devagar pela rua, mesmo com a urgência de seu irmão pedindo o contrário.