Quando os dias passaram a ser longos demais, e as noites demasiadamente curtas
Antes de tudo, fora uma decisão técnica. Meu corpo pesava, os pesadelos me rasgavam a carne e me colocavam, mais uma vez, letárgico. Um torpor passou a me acompanhar por qualquer canto – e a me punir com toda sua força ao menor sinal de resistência. Sucumbi. Se antes já era inapto frente grande parte dos afazeres que me eram oferecidos, passei a ser, pela primeira vez em anos, a vivência resoluta de uma forte convicção: não conseguir. Nunca planejei que esses contornos de morbidez delineassem todo o meu tempo. Também não me foi oferecido caminho alternativo, nem ao menos possibilidade de contestação, ou fuga. Sempre me pareceu que essa perturbação tinha competência demais. E quando passei a cogitar que passos maquiavélicos guiavam a mais negra das febres, me distanciei mais e mais das poucas pessoas que ainda me suportavam. O que se seguiu foi uma vida em trevas.
Numa dessas noites, ela veio até meu apartamento. Bateu na porta, pediu para entrar. Não abri. Pediu desculpas. Do quarto, lembrei que um dia eu a amei com todas as forças que hoje me faltam. Eu não abri a porta! Não sei o que respondi ao eco abafado que vinha do corredor.
Os seus efeitos ansiolíticos provocam no indivíduo um estado de relaxamento muscular, sonolência, alívio da tensão e ansiedade, cansaço e letargia que podem ser acompanhados por desinibição, loquacidade, excitação, agressividade, linguagem afectada, sentimentos de isolamento ou depressão.
Ela desceu e, estática sob a chuva que caía, gritou palavras de carinho. Parecia se despedir.
Da porta da rua
Já estava no meu segundo comprimido de Rohypnol (flunitrazepam). Em algum lugar do meu corpo, seus quatro miligramas encontrariam toda uma cartela de outra benzodiazepina sintetizada (tomei o primeiro Valium ao ouvir a primeira batida em minha porta).
Doses elevadas poderão provocar náuseas, aturdimento, confusão mental, diminuição da coordenação psicomotora, sono, sedação excessiva, perdas de memória, lentificação do pensamento ou instabilidade emocional.
Essa era única defesa de um front já comprometido. Há tempos não saía de casa. Alguém ainda tinha a chave, entrava, cumpria uma série de tarefas e saía. Nunca abri a porta, mas lembro que ela chegou até a entrada de meu quarto. De lá me observou por alguns instantes, sem nada dizer. Vi seus olhos verdes me fitarem com pena, sofrendo de uma chaga que não era sua. E de lá, da entrada de meu quarto, deu meia-volta e não voltou mais. Até ontem.
Existe tolerância às benzodiazepinas mas esta não é muito acentuada. Quando consumidas durante vários meses, esta tolerância aumenta, provocando dependência física e psicológica.
De um algum modo, que eu não tenho por onde explicar, sempre soube que os acontecimentos iriam se sobrepor sem qualquer participação minha. O que a mim cabe como certeza, é que esta condição não me é exclusiva. Trata-se de um estado, temporário ou não, diluído na medida de humanidade de cada um. O que não se sabe é quando a dor virá. São sucessivos apertos e náuseas, listas e listas de episódios envolvendo fadiga, asfixia e pânico; desmanche do âmago, que sangra sem hemorragia alguma.
Pensei em como poderia retribuir os gritos que vinham da rua. Não tive coragem suficiente para olhar pela janela. Na verdade, não tive interesse. Sabia que, além de tudo, a chuva me separava da figura da única que compreendeu que eu nunca conseguir viver por inteiro ao lado de ninguém. Nem por isso deixei de amá-la.
Ao meu modo, também me despedi. Num misto de penumbra e solidão, ouvi sirenes de terras distantes, ecos da dor que, após pulverizarem o quarto, se misturavam aos pingos da chuva cinza do lado de fora. Brindei enquanto ainda chovia. Ela se foi; estou pronto para morrer.
De fato, as tentativas de suicídio com benzodiazepinas não costumam ser bem sucedidas, excepto quando são combinadas com outras substâncias, como o álcool.Não é aconselhado o uso destas substâncias durante a gravidez e a lactação.