apenas porque morremos
em algum canto da China um
filósofo camponês decretou
que o sono é obsoleto
apenas porque morremos
o cinismo o capitalismo o freudo-
niilismo, as canções de ninar
você não acreditaria que a carne
em decomposição libera odores
que excitam a fome de certas espécies
você não acreditaria que eu sigo
mentindo e que agora as mentiras
são quase bonitas
apenas porque morremos:
a beleza.
apenas porque morremos
o sol voltará amanhã
exigindo que ao menos
um
de nós
tente de novo
você não acreditaria nas coisas
que tenho tentado provar –
a libido, o corpo, o frio
(sobretudo o frio)
você não acreditaria que
apenas porque morremos
as coisas ainda brilham
que apenas porque morremos
ainda somos necessários
e que novamente e pela última vez
(é sempre pela última vez)
tornaremos a amar & viver & perder
porque estamos sempre perdendo
e é exatamente por isso que somos
como anjos, querida, somos como
anjos que se mijam nas calças e
lêem milagres nas castanheiras
você não acreditaria, mas você
viu o milagre quando se olhou
no espelho pela primeira vez
e apenas porque morremos não
deveríamos nos olhar nos espelhos
por mais de uma vez
mas você
carrega
a delicadeza das pedras
você jamais acreditaria
que nós sequer morremos
Ítalo Diblasi