quinta-feira, janeiro 02, 2020

A baba quase seca ainda luta para escorrer pelo canto da boca

Como quem chega ao final de uma equação, talvez a humanidade já tenha produzido todos os textos possíveis.

Talvez.


quinta-feira, dezembro 28, 2017

Pontual

Enfrenta sozinho a noite
porque teme morrer aos olhos de ninguém
Ao raiar do dia
desfila um sorriso inadequado por um cabaré que não é seu
Cerra os punhos
porque as unhas contra a carne oferecem a ideia fundamental
Olha nos olhos
Porque prometeu ao mundo que não seria como os seus

Um contorno familiar ao lado
Sombra acinzentada que descortina passados
Procura na hesitação do outro o seu projeto de futuro
Leia nessa mão desconhecida palavras nunca ditas
Ignora

Coração pequenino, tens pressa em confessar tua derrota
Apenas porque morremos

Porque o sol voltará amanhã
exigindo que ao menos
um
de nós
tente de novo

===

* Com Carlos Drummond de Andrade e Ítalo Diblasi

quarta-feira, dezembro 13, 2017

Uma dose de serotonina


apenas porque morremos
em algum canto da China um
filósofo camponês decretou
que o sono é obsoleto

apenas porque morremos
o cinismo o capitalismo o freudo-
niilismo, as canções de ninar

você não acreditaria que a carne
em decomposição libera odores
que excitam a fome de certas espécies

você não acreditaria que eu sigo
mentindo e que agora as mentiras
são quase bonitas

apenas porque morremos:
a beleza.

apenas porque morremos
o sol voltará amanhã
exigindo que ao menos
um
de nós
tente de novo

você não acreditaria nas coisas
que tenho tentado provar –
a libido, o corpo, o frio
(sobretudo o frio)

você não acreditaria que
apenas porque morremos
as coisas ainda brilham

que apenas porque morremos
ainda somos necessários

e que novamente e pela última vez
(é sempre pela última vez)
tornaremos a amar & viver & perder
porque estamos sempre perdendo
e é exatamente por isso que somos
como anjos, querida, somos como
anjos que se mijam nas calças e
lêem milagres nas castanheiras
você não acreditaria, mas você
viu o milagre quando se olhou
no espelho pela primeira vez

e apenas porque morremos não
deveríamos nos olhar nos espelhos
por mais de uma vez
mas você
carrega
a delicadeza das pedras
você jamais acreditaria
que nós sequer morremos

Ítalo Diblasi

terça-feira, outubro 03, 2017

Epílogo

Aquela sensação, ou aquele desejo, de ir dormir e não mais acordar como somos. Descortinar a rotina, levantar o peso do cotidiano, do existir, que desce sobre as horas como a força gravitacional que nos prende ao mundo, e encontrar um lugar para ser acolhido entre a vida que corre sem dono, imposta, e o sonho. Se cobrir com essa lacuna e alimentar desejos de amanhã. 

quinta-feira, abril 13, 2017

Amanhã

Hoje as minhas mãos trêmulas procuram na penumbra da sua hesitação o que acordamos chamar de futuro.

quinta-feira, março 02, 2017

Tempo

Chama-se resignação o tempo em forma destino.

Aceitá-lo é morrer aos poucos.

sábado, abril 12, 2014

Alva

Pernas brancas que levam um corpo branco pela imensidão alva de uma cama. Um corpo ágil que espera por segundos você enterrar sua última quimera. O gesto que definirá o antes e o depois de uma vida. Decisão de carne.

sábado, novembro 30, 2013

Tomo 1

Vivia espaçada entre desejos. Morta. Ceifando aos poucos um horizonte de veias e sangue.
"Quem é você?", disse ao próprio ombro antes de submergir de forma derradeira.

Nadou pela nódoa mais uma vez, sempre sozinha, sempre respirando fundo, forte, na ilusão de se encher de vida alheia. Moldou os dias de desespero com penumbra. E, sozinha, escolheu deixar de existir.

sábado, junho 09, 2012

HC


Dentro de um círculo formado por duas mesas em forma de lua, doutores quase meninos se revezam entre o flanar e a falta de estrutura.

Eles formam uma casta atípica, delimitada pela ausência de negros e sobrenomes comuns. Um desses não sabe como uma paciente pode fazer para se vestir nesses corredores, mas com agilidade volta para o pc e quase se masturba com a tomografia de um caso que não é seu. Abaixo dessa casta, traços não europeus e sobrenomes como silva e santos caracterizam o time daqueles que dizem que o banheiro é o vestiário de quem teve alta, mesmo com acessos expostos.

Um novo garoto de jaleco engrossa o time. Depois de assumir a papelada de um óbito, o único representante da neurologia percorre sua via crucis. Com sua ausência, os casos acumulados cobram a urgência que sempre tiveram. Ele despacha como pode, gritando nomes de gente que não consegue se mexer. Pacientes psiquiátricos dividem os corredores com os demais. Uma senhora tem um surto. Ela ganha um abraço terno do médico responsável enquanto diz "não aguento mais" repetidas vezes.

Todos queriam o mesmo abraço. Ninguém aguentava mais.